Essa é a carta que segue sem resposta, em algum lugar da inteligência artificial do sistema.
Mas estamos aqui, seguindo e pedindo por um mundo mais inclusivo, pois
é fácil dizer que o autista vive no mundo dele, quando também não nos abrimos para conhecer seu mundo.
Ao atendimento do Itaú Cultural
No dia 03 de março de 2019, um domingo, estivemos no Itaú
Cultural para prestigiar a exposição “Ocupação Manoel de Barros” e a
apresentação infantil “Crianceiras”, baseado na obra infantil do poeta.
Estávamos aproveitando o feriado de carnaval entre família eu, meu esposo e meu
filho, e ainda uma amiga que mora no Litoral de São Paulo, que há 15 anos
trabalha com educação infantil, realizando projetos educacionais utilizando a
obra poética de Manuel de Barros como base. Sua mãe de 70 anos estava com a
gente. Ela mora no interior de São Paulo e desde os 15 anos de idade não
visitava a Av. Paulista. Também estava o filho de 12 anos desta minha amiga.
Como meu filho é uma criança de 7 anos que tem TEA (Transtorno
do Espectro do Autismo), achamos que seria tranquilo sair para a exposição. Lembro
que comentei antes mesmo de sair de casa que por ser num espaço cultural seria
mais apropriado para sair com meu filho naquele feriado de Carnaval.
Como disse, minha amiga é uma estudiosa da obra de Manuel de
Barros e já conhecia todas as músicas e animações da apresentação musical “Crianceiras”.
Inclusive ela tinha apresentado as músicas para meu filho que, por ser muito
musical e adorar animações, mostrou muito interesse.
Enfim, era para ser um fim de semana de reencontros entre
família, amigos e poesia.
Meu filho é uma criança doce que adora música, instrumentos
musicais e, embora tenha TEA, sempre buscamos sair com ele, inclusive somos
voluntários da Sessão Azul (Sessão de cinema adaptada para pessoas com TEA e
distúrbios sensoriais). Meu filho é uma criança não verbal, se utiliza de
comunicação alternativa, mas ainda de forma a fazer apenas alguns pedidos. Ele frequenta
a escola regular, faz 20 horas de terapia por semana e 2 horas de fonoaudiologia
por semana. Ou seja, é uma criança muito esforçada para transitar entre o seu
espectro do autismo e as demandas e exigências do nosso mundo neurotípico.
Essa foto foi tirada enquanto aguardávamos o show.
Logo que chegamos à exposição uma funcionária me abordou
para que levasse a minha mochila até o guarda volume. Assim que saí para ir ao
guarda volume a mesma funcionária fez o seguinte comentário: “Eh, mãe, se essa
moda pega, hein?”. Ela se referia ao
nosso cinto conector (um conjunto de cintos que unem a mãe e a criança, que é
usado principalmente em autistas não verbais em lugares com muito fluxo de
pessoas, para que sintam mais seguros, não fujam ou se percam). Neste momento
eu parei e expliquei para ela que meu filho é autista e o motivo pelo qual
usava o cinto. Conversamos um pouco sobre autismo e foi tudo bem. Mas notem que
ao entrar já tive que esclarecer a condição do meu filho sob um olhar julgador.
Se fosse apenas isso, tudo bem. Mas foram tantas coisas...
Ao entrar no espetáculo, pedi aos dois funcionários que
recolhiam os ingressos para que fôssemos os últimos a entrar. Expliquei
novamente a condição de meu filho e que ele poderia não entender o período de
espera sentado, gerando ansiedade.
Quando entramos, o show começou e meu filho estava bem tranquilo, não
gritou nem ficou com auto estimulação. Conseguimos assistir pelo menos 3
músicas no lugar que foi reservados para pessoas especiais, nos fundos. Nós já
estávamos felizes e admirados com o fato de meu filho estar tão bem durante o
show por 3 músicas, prestando atenção nas animações, mas em determinado momento
ele quis ver o show mais de perto. Certamente reconheceu as animações e
cantigas que minha amiga havia lhe mostrado passando no telão e quando viu que
ela mesma já estava mais à frente quis ir junto. Neste momento ele ainda estava
comigo, unido pelo conector em nossas cinturas. Ele se aproximou do palco e
sentou nas escadas. Estava muito atento aos instrumentos, às animações, curioso
e, acima de tudo, feliz por estar ali.
Enquanto estivemos na frente, por 3 vezes funcionários
vieram pedir para a gente sair. Tentei explicar a condição dele, de que não é
simples pedir coisas para uma criança no espectro do autismo, quanto mais
tirá-la de algo que é alvo de seu interesse. Tirá-lo dali naquele momento
causaria uma situação de crise disruptiva. Ele ficaria nervoso, gritaria e faria
uma “cena”, o que era justamente o que eu estava tentando evitar, afinal ele
estava junto a mim no conector, seguro e feliz. Mas os funcionários vinham de
tempos em tempos e criavam a própria “cena”, como se meu filho fosse uma
criança mal educada, e ao invés de me ajudarem com a situação, nos expunham à
plateia, que nem estava se importando com a nossa presença até que eles
começaram a ficar ali com caras amarradas, encarando a diversão do meu filho
como se fosse um problema.
Já ao final do espetáculo, quando os artistas desceram para
interagir com a plateia, eu peguei meu filho no colo para que os músicos passassem.
Neste movimento o conector se soltou e meu filho subiu no palco, sem que eu
pudesse evitar.
Se preso a mim os funcionários já não tinham nos deixado em
paz, imagina quando meu filho subiu no palco?
Ele ficou lá, dançando e vendo as animações, e os
funcionários, de forma muito autoritária, praticamente brigaram comigo para que
eu retirasse meu filho do palco. O problema é que, se eu subisse para busca-lo,
possivelmente ele entenderia como uma brincadeira e poderia ficar correndo de
mim, como num pega-pega. Eu poderia esperar um pouco e chamá-lo de uma maneira
que sei que ele entenderia.
Mas os funcionários
não quiseram me ouvir, insistiram para que o tirasse do palco. Subi quando meu
filho tentou pegar a baqueta que a baterista havia deixado enquanto interagia
com o público infantil neurotípico da plateia.
Neste momento que subi tentei sem forçar fazer com que meu
filho descesse, mas ele foi para trás do telão. Os funcionários disseram que lá
tinha fios e que era perigoso, para eu ir buscá-lo. Fui novamente ao palco e
percebi que não havia fios atrás do telão. Aquilo me indignou, pois não estavam
preocupados com a segurança dele, mas com o fato dele estar no palco. Aliás,
sempre foi esse o problema, desde que nos aproximamos. Ninguém para acolher,
para compreender a nossa situação, ou melhor, a nossa condição. Apenas para nos
julgar.
Ao final do espetáculo, fiquei tão esgotada emocionalmente
por toda aquela situação que fiquei atrás do telão segurando meu filho, ainda
sem entender muito bem por que as pessoas estavam tão bravas num espetáculo de
poesia do Manoel de Barros, triste de tanta intolerância e falta de empatia. Fiquei
ali, abraçada com meu filho, ouvindo os aplausos para tentar sair de lá sem ser
vista. Foi quando os músicos passaram por nós. Pedi desculpas para a baterista
e expliquei que ele adora musica e que é autista. Foi quando o vocalista virou
e me disse: “Tira seu filho daqui que o palco é meu!”. E foi embora para o
camarim.
Eu acordei umas 3 noites seguidas, perdendo o sono ao me
recordar dessa cena.
Uma criança de 7 anos, autista, que gosta de música, num
show para crianças com a poesia de Manoel de Barros, e toda essa história
acontecendo? Há algo muito errado e tenho certeza que não foi meu filho com
autismo, mas sim o despreparo das pessoas e principalmente a falta de empatia.
Arrasada por toda situação, meu esposo pegou meu filho que,
na sua inocência, não percebeu o que ocorreu. Estava feliz por ter chegado
perto da animação e dos instrumentos, do jeito dele, tentando interagir. Eles
saíram e eu fiquei para falar com uma das funcionárias, Isadora era o seu nome,
que me ouviu sem nenhuma reação empática, com os braços cruzados e me tratando
como uma mãe que não sabe educar o filho. Ouvia com um olhar de superioridade. Eu tentei explicar o quanto é difícil para
nós enquanto comunidade de família de pessoas especiais saírem de casa, que os
espaços precisam nos receber. Eu cheguei a me emocionar, caindo em lágrimas,
mas nada a convenceu de o que fizeram foi o certo e que nós não devíamos estar
ali, já que nosso filho não tem um comportamento formatado para assistir ao um
show infantil quieto nos fundos e no seu lugar.
Quando saí para procurar meu esposo, entreguei o conector
para ele e voltei para ir ao banheiro a fim de me recompor emocionalmente. Foi
quando fui abordada por uma família que também assistiu ao espetáculo, um casal
com uma criança ainda de colo. Eu não os conhecia, mas eles vieram para me dar
um abraço. Disseram que estavam muito sentidos pelo o que havia ocorrido e que
se colocaram no meu lugar e ficaram pensando como seria difícil passar por
aquilo.
Ainda bem que ainda existem pessoas assim. Minha amiga ainda
tentou argumentar com a tal Isadora em outro momento, sobre a obra de Manoel de
Barros e que aquele espetáculo não poderia formatar tanto as expectativas das
crianças, sejam elas autistas ou não, que os artistas dariam conta, afinal
fizeram um show infantil. Mas ela não sabia que o músico havia me dito sobre sair
do palco que era “dele”. Foi então que ela percebeu que realmente não havia
mais nada para fazer ali. Tudo estava equivocado.
Dia 2 de abril é o dia Internacional da Conscientização do
Autismo. Faremos nossa 3ª Caminhada dia 7 de abril na Av. Paulista. Em nome dos
milhares que somos, peço que preparem seus funcionários e seus espetáculos para
nos receber. Abram essa porta para nós e verão que o mundo do TEA é
surpreendente. Aprendam e ensinem. Estamos abertos para ajudar. Não seria justo
que outros passassem por isso novamente, não é justo passarmos por isso
novamente, pois estaremos nos espaços culturais que meu filho gostar e for de
interesse dele. Afinal, é isso que fazem os pais.
Nosso filho não é sem educação, ele é autista. É cidadão. E tem direitos.
O apanhador de desperdícios
Uso a palavra para compor meus
silêncios.
Não gosto das palavras
fatigadas de informar.
Dou mais respeito
às que vivem de barriga no chão
tipo água pedra sapo.
Entendo bem o sotaque das águas
Dou respeito às coisas
desimportantes
e aos seres desimportantes.
Prezo insetos mais que aviões.
Prezo a velocidade
das tartarugas mais que a dos
mísseis.
Tenho em mim um atraso de
nascença.
Eu fui aparelhado
para gostar de passarinhos.
Tenho abundância de ser feliz por
isso.
Meu quintal é maior do que o
mundo.
Sou um apanhador de desperdícios:
Amo os restos
como as boas moscas.
Queria que a minha voz tivesse um
formato
de canto.
Porque eu não sou da informática:
eu sou da invencionática.
Só uso a palavra para compor meus
silêncios.
Manoel de Barros
Oi Amanda ja seu nome traz um convite ao amor e tolerância!
ResponderExcluirSou psicanálista a 36 anos e quero agradecer por você, com muitos esforços construir um mundo que muita gente sonha ! Infelizmente essa luta de inclusão das pessoas com deficiência psíquica que gera precisam realmente serem respeitados porque tem mais obstáculos para transpor para poder viver a realidade! Uma sociedade tem que ser cobrada sim, do estilo de acolhimento, ainda mais em instituições que recebem incentivos públicos e privados para oferecer Cultura, um lugar humano onde é possível a partilha de talentos! E seu filho já estava mostrando a paixão pela música e poesia, estava dialogando com um poeta que também fala com plantas e passarinhos - qual o problema nisso? É vergonhoso e é necessário cobrar um ajuste de conduta para a empresa e um treinamento para os funcionários! Quanto aos artistas que fizeram uma criança infeliz- bebendo e comendo dos esforços de nossos impostos - é preciso além dos ajustes suas ações lembrar a eles que o poeta faz palavras de amor que comentam as fraquezas sussurrando no coração humano a esperança de dias melhores!
Irmanada na sua decisão e de seu filho de pintar o mundo de Manoel de Barros, contem com meus esforços!
Aida Schwab
Ananda, sei muito bem de sua luta por tirar as pessoas da ignorância e de desrespeito, em especial ao autismo. Conheço seu filho lindo Leo!! E um menino inteligente e educado, amoroso e atende quando interpelado com educação.Você e o Alexandre são pais conscientes, super responsáveis. É muito triste essa falta de educação e de respeito. Vamos Sim compartilhar para buscar tirar da ignorância e falta de humanidade com todas as crianças e pais de crianças especiais como o seu lindo filho. Um beijo grande.
ResponderExcluirMuito revoltante saber que vocês passaram por isso, o Léo é uma criança tão doce e feliz! Todas as crianças podem ter reações inesperadas! Lugares como esse deveriam estar preparados para receber as crianças, todas elas!
ResponderExcluirmuito triste a falta de respeito , mais amor por favor
ResponderExcluirconheço o Léo desde bebê tenho um carinho enorme pela família , fiquei muito triste com o que aconteceu
ResponderExcluirPuxa Amanda, sinto tanto por vocês, ainda assim temos muito a agradecê-la por compartilhar tudo isso. Aprendemos juntos e também nos sensibilizamos. Cada dia te admiro mais.
ResponderExcluirApós algum tempo, estava passando em frente ao Itaú Cultural. Entrei e pedi para falar com alguém dos eventos.
ResponderExcluirFui muito bem atendida, lembravam do ocorrido, disseram que o caso foi discutido pela diretoria, que ficariam mais atentos quanto a programação INCLUSIVA. Hoje deixaram de colocar espetáculo inclusivo, mas descrevem que tem interpretação em libras.
Nada de novo, nada para nós.