sábado, 23 de abril de 2016

O autismo como comparação negativa: nunca mais.



Esta semana, alguns amigos, que também são pais e mães de autistas, compartilharam seus depoimentos indignados com o artigo do jornalista Rui Martins, no Correio do Brasil, em que diz:
O autista além de sofrer problemas de comunicação vive fora da realidade e isso nos leva a pensar se a presidente Dilma e o PT, isso engloba o site 247 e os blogueiros, não seriam todos autistas. Por que essa impressão? Ela vem da fragorosa derrota de Dilma na votação para a admissibilidade do pedido de destituição de Dilma pela Câmara Federal.
Por que Dilma e o PT aceitaram ser massacrados publicamente diante de milhões de brasileiros, num ato político transformado em espetáculo de televisão, cada voto comemorado como um gol, a ponto da comentarista do Canal France24 comparar a crise e o povo nas ruas como uma final de campeonato?

 Acho muito interessante quando esse tipo de discurso vem de alguém que se diz jornalista de esquerda, como escreveu em outra matéria:
... Assim, realmente, não dá para se entender a política de comunicação do governo. Será que todos nós jornalistas de esquerda que votamos na Dilma somos paspalhos?

Nós, pais de autistas, somos de esquerda, somos de direita, somos de centro-esquerda ou centro-direita, ou qualquer outro rótulo político que queiram nos dar. Mas sabe o que o somos mesmo? MÃES, PAIS E IRMÃOS DE AUTISTAS.

Sentimos na pele o que é fazer parte das minorias do Brasil. Estamos lutando num mar revolto, onde fomos lançados agora, e onde o Autismo só passou a ser visto como deficiência no Brasil em 2012, e a lei que nos dá direitos apenas em 2014.

Portanto, está muito enganado quem acha que pode sair escrevendo e comparando quem quer que seja, de forma pejorativa, com nossos FILHOS, NETOS e IRMÃOS AUTISTAS, ainda mais quem escreve em caráter de correspondente internacional.

Não dá para achar que uma busca rápida no Google definiria o uso da palavra autista. Pesquise mais, pesquise mesmo no Google, e pesquise mais, pois o Google não dá conta da nossa realidade, e o papel de um jornalista é apurar não apenas os fatos, mas também a realidade que o cerca.
Se o próprio Rui Martins comparasse de forma pejorativa autistas com políticos europeus num jornal da França ou da Suíça, seria bem possível que nem sequer fosse publicado. Chamariam sua atenção, o editor pediria para refazer essa parte, afinal o senhor mesmo escreveu que aí no velho mundo as coisas são bem diferente na mídia:
Aqui na Europa, onde acabei ficando depois da ditadura militar, existe um equilíbrio na mídia. A França tem Le Figaro, mas existe também o Libération e o Nouvel Observateur. Em todos os países existem opções de direita e de esquerda na mídia. E os jornais de esquerda têm também publicidade pública e privada que lhes permitem manter uma boa qualidade e pagar bons salários aos jornalistas.

Quando li esta matéria, vi muitos pais escrevendo na caixa de comentários, e depois fiquei sabendo que o autor nem sequer se importou, assim como o editor e o jornal, que poderiam seguir o exemplo de qualidade que Martins escreve. Fiquei pensando se realmente deveria gastar meu tempo para escrever também, mas sobrou um tempinho e cá estou tentando explanar minhas ideias.

Fiz uma pesquisa rápida para saber quem é o jornalista, para não cair no mesmo equívoco que ele.  Ele tem uma bela carreira, no entanto, de suas causas e livros publicados não encontrei nada que tenha me encantado a ponto de defendê-lo, dizendo que poderia ter se equivocado ao usar o termo Autista no atual cenário politico. Ele é inteligente o suficiente para saber que esta menção pejorativa incomodaria a nós, pais de autistas (ou qualquer outra pessoa com empatia suficiente pela causa). Mas, para ele, sabe quem somos nós? Somos o que chamam de minorias irrelevantes. E, posso estar enganada, mas enquanto ele não repensar o uso da expressão que usou, participará do lado das pessoas que acham que as minorias não deveriam exigir seus direitos, e deveriam obedecer a ordem do que já está institucionalizado e pronto.  Quem formam os grupos de minorias? Mulheres, negros, indígenas, população LGBT, população camponesa e pescadora, deficientes, pobres, etc. São populações que sofrem desigualdade na sua história econômica, discriminações por fatores étnicos, físicos ou genéticos, culturais ou religiosos. Portanto, deficientes entram historicamente neste conceito de minoria.

Podemos ser chamados de minorias, mas somos tantos que um dia estava dando uma aula e ao ler um texto sobre o assunto, um aluno questionou: “Professora, se somar todas as minorias deveriam nos chamar de maioria”.

Pois é, talvez meu aluno tenha razão, o problema é que raramente essas minorias se unem. Eu mesmo já vi mães de autistas ficarem revoltadas porque outra destas minorias teve um direito aprovado e executado, enquanto deveríamos tirar o exemplo e ver como conquistaram tal ganho e tentar fazer o mesmo. Dividir sempre diminui o que temos para ganhar se podemos compartilhar.

Recentemente a atriz Fernanda Torres escreveu algo que, para ela, não era ofensivo sobre as cantadas que as mulheres recebem todos os dias nas ruas. Mas esse texto acabou por causar tumultos nas redes sociais, pois indignou muitas mulheres. A atriz refletiu sobre o que escreveu, e sobre o que as mulheres escreviam de volta, e percebeu que o que falou não condizia mais com o atual curso que as mulheres tomaram na História. E sim, ela se retratou. Eu vi sua entrevista no Canal Brasil (programa Conversa Afiada) onde ela responde de uma forma super bacana sua reflexão sobre o tema, e sua retratação com as mulheres. Olha que coisa maravilhosa, entender que às vezes uma expressão não é algo rígido, alheio às transformações socioculturais, que as expressões se transformam junto das instituições sociais.

Seria muito bacana também se o jornal e o jornalista viessem a público para uma reflexão e retratação, afinal a matéria esta rendendo muito mais por explorar de forma negativa o uso da denominação Autista do que em sua medíocre argumentação política.

O Autismo não tem o mesmo significado do passado. Aliás, a pouco menos de 20 anos quem sabia o que era Autismo?  Muitos autistas nem foram reconhecidos como autistas por falta de conhecimento dos médicos, da comunidade científica e também de pais, que não queriam seus filhos numa condição que poderiam ser tratados de uma forma tão pesada e negativa como faz parecer Rui Martins em seu “inocente” texto sobre a Dilma e o PT, que, aliás, é tomado de chavões e argumentos pífios de uma mídia golpista. Até porque, me parece, que o jornalista gosta de crescer na polêmica para ser lido, não importando a qualidade do texto, mas sim a repercussão em cima da polêmica vazia. Já encontrei outro blogueiro usando a palavra Autismo da mesma forma negativa, validando os argumentos do jornalista Martins. Neste blog  diversos pais postaram nos comentários o alerta sobre o uso da denominação “autista”, e outros, indignados com o uso da expressão em comparações politicas. Com isso o blogueiro está apenas ganhando leitores, uma armadilha simplória para atrair leitores nas estatísticas de seu blog. Para aumentar a falsa polêmica usa ainda a denominação Canhoto como expressão negativa. Para uns pode parecer estranha a comparação, mas não faz muito tempo os canhotos também já foram fortemente discriminados, tidos como criaturas demoníacas e sendo obrigadas a se tornar destras.

Nas ultimas décadas do século XX nasceu uma Democracia no Brasil. Uma Democracia criança, que precisou aprender a andar e a seguir seu caminho (Constituição de 1988), mas, neste caminho, muitos que acompanharam o crescimento desta jovem Democracia eram aqueles que estiveram contra ela na Ditadura.

A Democracia cresceu, as minorias ganharam vozes, transformaram-se em movimentos sociais e, recentemente, a população de deficientes também passou a ser ouvida. Mas ainda estamos muito longe de sermos enxergados como um movimento como o de outras minorias que já consolidaram suas lutas dentro do viés politico institucional. Portanto, não podemos deixar passar em silêncio que usem a palavra AUTISTA como forma negativa de expressar qualquer indivíduo na sociedade. E temos que estar atentos, pois sem democracia, voltaremos a ser a minoria marginalizada, reprimida e sem voz.
Para quem assistiu na Suíça e teve a percepção que o processo do impeachment foi tratado por nossos políticos como jogo de futebol, saiba que para muitos brasileiros que são a favor do voto SIM ou NÃO, aquilo tudo foi um palco da vergonha.

E, sim acabou o tempo em que para falar mal de uma situação ou de alguém poderia se expressar dizendo “Isso é programa ou coisa de índio”, “Isso é coisa de mulherzinha”, “Até parece serviço de preto”, “É muita viadagem”, “Isso é coisa de Homem”, “Parece autista”, “Maneira canhestra de agir”, etc. Enfim, se continuar a se expressar assim, melhor procurar uma máquina do tempo e voltar para algum lugar antes de 1970. Talvez o século XVII seria o mais adequado. Porque aqui, neste século e neste momento histórico, tem gente que luta e ainda vamos fazer de nossas diferentes minorias uma força da maioria. Afinal ainda temos a Democracia e não vamos deixar de lutar por ela.

Nota final: meu filho, além de autista, é canhoto.


Obs: Os links para as matérias foram encurtados usando o serviço NãoFode.xyz (http://naofode.xyz/) apenas para não contribuir para o crescimento dos pageviews das páginas citadas em cima dessa polêmica vazia e reprovável.