domingo, 25 de outubro de 2015

Feliz aniversário feliz


A festa de aniversário de um ano é mais uma tradição e um evento social para os pais celebrarem com parentes e amigos do que para a criança, já que ela não tem muita compreensão do que está acontecendo à sua volta. Os convidados são pessoas próximas, e outras às quais queremos apresentar nosso filho amado e lindo para a sociedade.

Já no segundo aniversário as crianças estão mais espertas, e o mundo do consumo já absorveu essa esperteza, oferecendo aos pais decorações de todos os desenhos e personagens que as crianças gostam. Há uma falsa ideia de que a criança está escolhendo o tema de seu aniversário, enquanto, na verdade, o mundo sedutor do consumismo já fez isso antes, apenas induzindo ou manipulando a verdadeira opção de escolha  da criança.

Tudo bem a criança escolher como vai querer alguns detalhes de sua festa, como os sabores dos doces, a cobertura do bolo e até mesmo alguns enfeites, mas o tema central não deveria ser o Peixonauta, a Peppa ou a Galinha Pintadinha, e sim a bela criança em sua plena infância. Essa indústria do consumo nos convence que a criança escolhe, enquanto na verdade, aniquila potenciais de criatividade. E essa crítica não é para você que lê esse texto, é para mim. O aniversário do Léo de 2 anos teve como tema o Peixonauta.

Nesta mesma ideia de ter que escolher tema para a festa, pensamos, no 1º aniversário do Léo, o quanto seria difícil escapar dos tão famosos “temas”. Então, como ele ainda não tinha a capacidade para escolher, fizemos uma festa tendo nosso estimado Saci como tema. Por quê? Porque eu adoro Sacis, e meu saudoso avô Adelino me contou certa vez que viu um, e acreditava piamente nisso. É o suficiente para o Saci fazer parte da minha história. Nós mesmos fizemos os enfeites, contando com ajuda de alguns familiares. Convidamos bastantes amigos.

Nessa época o Léo ainda não andava, e não tinha nenhum dentinho. Era um bebezão lindo. Adorou a hora do parabéns. Foi no colo de todos convidados, tiramos muitas fotos. Ele estava muito alegre neste dia.



Já no aniversário de 2 anos, tínhamos acabado de mudar de casa, o orçamento estava mais apertado, e já estávamos com a pulga atrás da orelha a respeito do comportamento atípico do Léo. Diante da correria com a mudança, foi muito mais prático ceder às regalias dos buffets e seus temas de aniversário. Escolhemos o Peixonauta, pois era um desenho que o Léo adorava. Fizemos a festa no salão de festas da casa de meus pais, como no primeiro ano.

Neste aniversário o Léo só correu. Não deu a mínima para os convidados. Tínhamos que “laçá-lo” e carregá-lo no colo para conseguir tirar uma foto ou mesmo oferecer um copo d’água. Enfim, ele estava super agitado. Na hora de cantar parabéns, não demonstrou a empolgação do ano anterior. Ficou apenas olhando para as pessoas, tentando compreender o porquê daquela cantoria.
Este aniversário de dois anos foi muito estranho, pois deixamos tudo nas mãos de um buffet, e acabamos não curtindo como no ano anterior, onde que ficamos alguns meses antes preparando as coisas, produzindo enfeites, lembrancinhas...

Após a festa de 2 anos, mais especificamente no dia seguinte, a coordenadora da escola que o Léo tinha começado a frequentar a pouco menos de 2 meses nos chamou para dizer que ele tinha caraterísticas de autista, e que era para investigarmos, como já contei nos textos A queda e Sem Chão. Não deu tempo nem de curtir esse aniversário. O 2º aninho do Léo foi intenso, onde passamos por tudo que já narrei em textos aqui do blog, além de coisas que não convém narrar.



(foto do parabéns de 2 anos)

Quando ele estava prestes a completar 3 anos, estávamos quase certos de seu autismo, mas ainda nos agarrávamos em fios cada vez mais tênues de esperança, que o diagnóstico iria em breve dissipar.
Devido a isso, no 3º aniversário novamente escolhemos um tema comercial para a festa. Dessa vez foi a inescapável Peppa. Mas decidimos não contratar um buffet que trouxesse a decoração. Compramos um “kit festa” padrão mesmo. Convidamos novamente todos os familiares, mesmo aqueles com os quais não temos muita convivência, colegas de trabalho e a turma toda de amigos mais próximos. Lotamos o salão do prédio.

Olhando hoje, mais distanciada daquele momento, percebo que algo dentro de mim já pressentia que aquele seria o último aniversário planejado como uma mãe de criança neurotípica. Foi um desejo meu ter todos por perto, como se meu Leonardo estivesse fazendo seu 1º aniversário. Algo que  fazia me apegar a uma última esperança, de que meu filho não era autista, que ele iria falar logo, e que todos em breve esqueceriam aquela fase. Dói um pouco assumir isso, pois hoje amo-o exatamente como é, aceito sua condição de autista, e apenas quero que ele possa aprender a desenvolver todo seu potencial, como qualquer mãe com qualquer filho. Acima de tudo, luto para que respeitem sua diferença.

Nós sempre passeamos bastante com o Léo. Antes mesmo de completar 3 anos ele já tinha ido em diversos shows, peças de teatro, festas e exposições como a do Cândido Portinari e do Stanley Kubrick, lugares bastante cheios e movimentados. Sempre fizemos questão de colocá-lo ele em contato com diversos mundos, e tivesse acesso a diferentes expressões culturais.

Mas a festa de 3 anos nos revelou algo muito comum em crianças dentro do espectro autista: não saber lidar com os olhares e atenção dos outros sobre eles. O autismo dele estava lá, para quem quisesse ou pudesse ver, independentemente de qualquer diagnóstico.

Era uma noite fria de final de inverno, e por esse motivo tivemos que ficar dentro do salão de festas. O salão do prédio se divide em dois ambientes, e os dois estavam tomados por ruídos típicos de uma festa infantil, das vozes e risadas dos convidados. Em um ambiente estava tocando música, e no outro a TV passando clipes da Palavra Cantada. Diferente de outros lugares que o levamos anteriormente, daquela vez todos queriam sua atenção, cumprimentar, tirar foto, pegar no colo, enfim. Ele era o tema, e não a Peppa.

Mas para ele aquela atenção toda estava beirando o insuportável. Não aguentava ficar dentro do salão. Durante grande parte da festa meu pai ficou com ele na área comum do condomínio. Iam para o playground, onde só havia crianças e menos ruído. Mas, como estava frio, tivemos que trazê-lo para dentro e fechar a porta para que ele não saísse mais do salão. Foi uma péssima ideia, confesso, mas no momento pareceu correta.

Tentamos fazer ele se acalmar, mas o pandemônio da festa não tornava essa tarefa fácil. De repente minha mãe me perguntou: “Cadê o Léo?”, e eu, que havia desgrudado os olhos dele por apenas um minuto, não soube responder. A porta ainda estava fechada, então ele tinha que estar no salão. Corri os olhos rapidamente por todos os cantos, e nada. Fui até o banheiro feminino e não o encontrei. 
Quando estava prestes a entrar em pânico o encontramos no chão do banheiro masculino, deitado de bruços embaixo do armário da pia, escondendo-se do barulho da festa. Aquilo partiu meu coração.

Levei ele até o salão e coloquei-o para assistir alguns clipes da Palavra Cantada, o que ele fez por bastante tempo, sem dar mais nenhuma atenção a nada nem ninguém à sua volta, e isso o acalmou. Percebi que isso incomodou algumas pessoas, que chegaram a sugerir que eu desligasse a TV, assim quem sabe ele deixaria de ignorar a festa, pois era como se a TV o hipnotizasse. Mas, na verdade, a TV foi a fuga para um lugar mais confortável dentro dele. Tanto que, quando o tiramos da frente da TV para cantar parabéns, ele se enroscou no pescoço do pai, e depois no meu pescoço, se recusando a olhar para as pessoas em volta da mesa. Também não quis soprar as velinhas. Temos apenas uma foto para o álbum em que, por sorte, o fotografaram de frente para a mesa do bolo. Nas outras fotos ele está grudado no nosso colo, sem querer ver o parabéns.




Com exceção da minha mãe e do Ale, ninguém nunca comentou ou conversou comigo sobre este dia. Principalmente sobre esse momento. Não sei exatamente o que as pessoas viram ou acharam. Mas ali meu coração ficou em caquinhos.

E, naquele momento, com todo respeito do mundo ao meu filho, prometi que nas próximas festas faria as coisas para ele, e apenas para ele. Seu aniversário seria seu aniversário e, não mais um evento social. Quando chegou a época de planejarmos a festinha para comemorar os seus 4 anos, nosso mundo já era outro. Já tínhamos o diagnóstico. Enfrentamos tantas lutas até aquele momento, e sabíamos que muitas outras ainda estavam por vir. Mas isso não poderia nos impedir de comemorarmos seu aniversário, e que o Léo se divertisse com isso.

A primeira decisão foi que a festa teria apenas os convidados que o Léo tem mais convivência. Essa foi uma decisão difícil, pois diversas pessoas por quem temos um imenso carinho ficariam de fora, e não gostaríamos de magoar ninguém. Mas o Leonardo é prioridade. Sua festa de aniversário teria que começar a fazer sentido na sua vida.

Segunda decisão: nada de temas comerciais ou consumistas. A festa seria planejada especialmente para ele e suas particularidades. E, mesmo assim, não sabíamos se ele iria perceber que a festa era sua, que era para celebrar sua vida e, principalmente, para que se divertisse. Mas iríamos tentar.




Terceira decisão: faríamos tudo nós mesmos. Sem buffet contratado. Como nos bons e velhos tempos, onde nossas mães faziam tudo. Como eu trabalho fora, tive que contar com a valiosa ajuda de um casal de amigos, de minha mãe e de minha tia, que tradicionalmente faz nossos bolos de aniversários serem aclamados após o parabéns.

Quarta decisão: chamaríamos algumas crianças do prédio, aquelas que convivem com o Léo, e principalmente respeitam e cuidam dele toda vez que descemos para brincar no playground ou na piscina.

E, por fim, a decisão mais acertada: fizemos as pistas visuais referenciando todos os convidados. Como leram no texto A ponte épara atravessar, estamos fazendo um quadro de rotina, onde o Léo coloca as atividades que serão realizadas no dia. Nos finais de semana, antes de sairmos para qualquer lugar, colocamos neste quadro as pistas visuais com os rostos e nomes das pessoas que vamos encontrar. Essa medida ajudou muito a diminuir o grau de ansiedade dele quando saímos de casa.
Preparamos um painel no salão de festas e colocamos acima da pista visual do bolo a foto dele, e o orientamos a colocar as pistas com a imagem de cada convidado assim que eles chegassem.

Foi muito bonitinho. Para cada convidado que chegava, dávamos a respectiva pista visual, que ele entregava para o Léo. O Léo então pegava a pista e a colava ao lado da dele ou do bolo no painel, dava um beijo nos recém chegados, e depois voltava a brincar.



Também alugamos uma cama elástica. Esse foi meu presente para o Léo. Ele adora brincar no pula-pula e na cama elástica, mas todas as vezes que saímos, ele encontra a maior dificuldade em brincar nesses brinquedos. As crianças desconhecidas não entendem que ele é um menino especial, que não entende regras, e deixá-lo “furar” a fila é romper com um paradigma fundamental do universo infantil. Então, na maioria das vezes, ele chora, pois não entende que tem que esperar sua vez. Geralmente ele faz uma birra, grita, chora, se joga no chão, e isso atrai os olhares das pessoas que não nos conhecem, olhares cheios de pré-julgamentos, taxando-o de “criança mal educada” e nós de “pais que não educam”. E mesmo quando ele consegue entrar em um pula-pula, dependendo de como as crianças estão brincando, ele não consegue ficar de pé, e muitas vezes sai frustrado, irritado, e propenso a mais birras e choros. A respeito dos olhares julgadores, sempre que consigo dou um jeito de informar aos desavisados que o Léo é autista, e não mal educado. E em todas as vezes as pessoas resignificaram seus olhares, o que reforça a importância de lidar com essa situação sem vergonhas ou recriminações.
Desde que fiz o curso sobre ABA (Analise Comportamental Aplicada), aprendi a lidar melhor com esses momentos disrruptivos. Mas ainda assim não é fácil. Por este motivo ficou decidido que no seu aniversário ele teria a cama elástica e reinaria sobre ela. E foi assim.



Fiz também uma mesinha de atividades, com papéis, cola, tesoura, lápis de cor, adesivos e um varal com prendedores coloridos, para que as crianças pendurassem suas artes. Deixei bexigas soltas no chão do salão e outras penduradas. Fiz algumas coisas sem glúten para que o Léo pudesse comer à vontade. Fizemos cachorros quentes, barquinhas de maionese e encomendei salgadinhos. Minha mãe e minha amiga fizeram os docinhos e, como já disse, minha tia fez o bolo. E nada de garçom servindo. Foi tudo como era antigamente nas festas de crianças de famílias mais humildes e mais felizes.

As crianças brincaram muito. O Léo brincou muito. Estava super feliz. Não saiu nenhuma vez do salão. No parabéns até deu uma assoprada tímida na velinha. Brincou tanto que tivemos que buscar o carrinho de passeio para que ele descansasse, e no fim da festa estava dormindo pesado.



Quando todos foram embora, ficamos apenas nós três: o Léo dormindo, eu e o Ale. Nosso peito estava transbordando de alegria. Tivemos que organizar tudo antes de subir para o apartamento, mas fizemos isso dançando, cantando, felizes, sem cansaço ou esgotamento. Sabe aquela sensação de felicidade plena? Era o que sentíamos.

Proporcionamos para nosso filho um entendimento de que todos estavam ali para brincar com ele e celebrar suas conquistas. A alegria dele quando viu suas terapeutas entrando no salão foi sensacional. Foi como se corações saíssem dos seus olhinhos em direção a elas, como nos desenhos infantis. Vou guardar aquele olhar de alegria e amor na minha memória para o resto da vida.

Cada autista é de um jeito. Têm aqueles que não gostam de muitas vozes ou de música alta; há aqueles que não gostam de bexigas ou papel de presente, que não gostam de toques, ou tudo isso junto. Por isso as festas de aniversário são sempre um dilema para nós, mães, pais e familiares. Mas, mesmo assim, de alguma forma temos que celebrar a vida de nossos pequenos. Temos que enxergá-los, fazer essa celebração por eles, e não apenas como um evento social compulsório. Afinal essa é especificamente a grande dificuldade deles: o social.

Então, por eles vamos romper com algumas convenções sociais. Faremos de nossas crianças o tema de suas festas, e faremos a comemoração de um jeito que elas curtam e se divirtam. É o mínimo que podemos proporcionar.

Uma semana depois do aniversário do Léo assisti a um vídeo na internet onde uma mãe de uma criança autista distribuiu ráfias coloridas para os convidados. Eles agitaram as ráfias ao invés de baterem palmas, e cantaram o parabéns numa versão bem calma. O garotinho ficou tranquilo e, dava para perceber, super feliz.

E é assim que vai ser daqui pra frente. Temos que nos reinventar, desafiar conceitos estabelecidos em nome de uma realidade diferente. Nem sempre saberemos se vai dar certo ou não. Mas uma coisa eu aprendi: minha prioridade é o Leonardo, e espero que as pessoas compreendam que não é nada contra elas, mas a favor de meu filho. Tudo o que eu quero é ver sempre aquele sorriso de alegria, aquele pé descalço sujo de tanto brincar com os amiguinhos. Eu quero que meu filho esteja inteiro em suas festas. Se ano que vem precisar ser diferente, diferente será. Mesmo sem a certeza de que tudo sairá tão bem quanto neste ano.

Mas quem tem certeza?