sexta-feira, 5 de abril de 2019

Inclusão sócio cultural. Vamos Pensar?





Essa é a carta que segue sem resposta, em algum lugar da inteligência artificial do sistema.
Mas estamos aqui, seguindo e pedindo por um mundo mais inclusivo, pois 
é fácil dizer que o autista vive no mundo dele, quando também não nos abrimos para conhecer seu mundo.


Ao atendimento do Itaú Cultural

No dia 03 de março de 2019, um domingo, estivemos no Itaú Cultural para prestigiar a exposição “Ocupação Manoel de Barros” e a apresentação infantil “Crianceiras”, baseado na obra infantil do poeta. Estávamos aproveitando o feriado de carnaval entre família eu, meu esposo e meu filho, e ainda uma amiga que mora no Litoral de São Paulo, que há 15 anos trabalha com educação infantil, realizando projetos educacionais utilizando a obra poética de Manuel de Barros como base. Sua mãe de 70 anos estava com a gente. Ela mora no interior de São Paulo e desde os 15 anos de idade não visitava a Av. Paulista. Também estava o filho de 12 anos desta minha amiga.

Como meu filho é uma criança de 7 anos que tem TEA (Transtorno do Espectro do Autismo), achamos que seria tranquilo sair para a exposição. Lembro que comentei antes mesmo de sair de casa que por ser num espaço cultural seria mais apropriado para sair com meu filho naquele feriado de Carnaval.

Como disse, minha amiga é uma estudiosa da obra de Manuel de Barros e já conhecia todas as músicas e animações da apresentação musical “Crianceiras”. Inclusive ela tinha apresentado as músicas para meu filho que, por ser muito musical e adorar animações, mostrou muito interesse.
Enfim, era para ser um fim de semana de reencontros entre família, amigos e poesia.

Meu filho é uma criança doce que adora música, instrumentos musicais e, embora tenha TEA, sempre buscamos sair com ele, inclusive somos voluntários da Sessão Azul (Sessão de cinema adaptada para pessoas com TEA e distúrbios sensoriais). Meu filho é uma criança não verbal, se utiliza de comunicação alternativa, mas ainda de forma a fazer apenas alguns pedidos. Ele frequenta a escola regular, faz 20 horas de terapia por semana e 2 horas de fonoaudiologia por semana. Ou seja, é uma criança muito esforçada para transitar entre o seu espectro do autismo e as demandas e exigências do nosso mundo neurotípico.

Essa foto foi tirada enquanto aguardávamos o show.

Logo que chegamos à exposição uma funcionária me abordou para que levasse a minha mochila até o guarda volume. Assim que saí para ir ao guarda volume a mesma funcionária fez o seguinte comentário: “Eh, mãe, se essa moda pega, hein?”.  Ela se referia ao nosso cinto conector (um conjunto de cintos que unem a mãe e a criança, que é usado principalmente em autistas não verbais em lugares com muito fluxo de pessoas, para que sintam mais seguros, não fujam ou se percam). Neste momento eu parei e expliquei para ela que meu filho é autista e o motivo pelo qual usava o cinto. Conversamos um pouco sobre autismo e foi tudo bem. Mas notem que ao entrar já tive que esclarecer a condição do meu filho sob um olhar julgador.

Se fosse apenas isso, tudo bem. Mas foram tantas coisas...

Ao entrar no espetáculo, pedi aos dois funcionários que recolhiam os ingressos para que fôssemos os últimos a entrar. Expliquei novamente a condição de meu filho e que ele poderia não entender o período de espera sentado, gerando ansiedade.  Quando entramos, o show começou e meu filho estava bem tranquilo, não gritou nem ficou com auto estimulação. Conseguimos assistir pelo menos 3 músicas no lugar que foi reservados para pessoas especiais, nos fundos. Nós já estávamos felizes e admirados com o fato de meu filho estar tão bem durante o show por 3 músicas, prestando atenção nas animações, mas em determinado momento ele quis ver o show mais de perto. Certamente reconheceu as animações e cantigas que minha amiga havia lhe mostrado passando no telão e quando viu que ela mesma já estava mais à frente quis ir junto. Neste momento ele ainda estava comigo, unido pelo conector em nossas cinturas. Ele se aproximou do palco e sentou nas escadas. Estava muito atento aos instrumentos, às animações, curioso e, acima de tudo, feliz por estar ali.

Enquanto estivemos na frente, por 3 vezes funcionários vieram pedir para a gente sair. Tentei explicar a condição dele, de que não é simples pedir coisas para uma criança no espectro do autismo, quanto mais tirá-la de algo que é alvo de seu interesse. Tirá-lo dali naquele momento causaria uma situação de crise disruptiva. Ele ficaria nervoso, gritaria e faria uma “cena”, o que era justamente o que eu estava tentando evitar, afinal ele estava junto a mim no conector, seguro e feliz. Mas os funcionários vinham de tempos em tempos e criavam a própria “cena”, como se meu filho fosse uma criança mal educada, e ao invés de me ajudarem com a situação, nos expunham à plateia, que nem estava se importando com a nossa presença até que eles começaram a ficar ali com caras amarradas, encarando a diversão do meu filho como se fosse um problema.

Já ao final do espetáculo, quando os artistas desceram para interagir com a plateia, eu peguei meu filho no colo para que os músicos passassem. Neste movimento o conector se soltou e meu filho subiu no palco, sem que eu pudesse evitar.

Se preso a mim os funcionários já não tinham nos deixado em paz, imagina quando meu filho subiu no palco?

Ele ficou lá, dançando e vendo as animações, e os funcionários, de forma muito autoritária, praticamente brigaram comigo para que eu retirasse meu filho do palco. O problema é que, se eu subisse para busca-lo, possivelmente ele entenderia como uma brincadeira e poderia ficar correndo de mim, como num pega-pega. Eu poderia esperar um pouco e chamá-lo de uma maneira que sei que ele entenderia.

 Mas os funcionários não quiseram me ouvir, insistiram para que o tirasse do palco. Subi quando meu filho tentou pegar a baqueta que a baterista havia deixado enquanto interagia com o público infantil neurotípico da plateia.

Neste momento que subi tentei sem forçar fazer com que meu filho descesse, mas ele foi para trás do telão. Os funcionários disseram que lá tinha fios e que era perigoso, para eu ir buscá-lo. Fui novamente ao palco e percebi que não havia fios atrás do telão. Aquilo me indignou, pois não estavam preocupados com a segurança dele, mas com o fato dele estar no palco. Aliás, sempre foi esse o problema, desde que nos aproximamos. Ninguém para acolher, para compreender a nossa situação, ou melhor, a nossa condição. Apenas para nos julgar.

Ao final do espetáculo, fiquei tão esgotada emocionalmente por toda aquela situação que fiquei atrás do telão segurando meu filho, ainda sem entender muito bem por que as pessoas estavam tão bravas num espetáculo de poesia do Manoel de Barros, triste de tanta intolerância e falta de empatia. Fiquei ali, abraçada com meu filho, ouvindo os aplausos para tentar sair de lá sem ser vista. Foi quando os músicos passaram por nós. Pedi desculpas para a baterista e expliquei que ele adora musica e que é autista. Foi quando o vocalista virou e me disse: “Tira seu filho daqui que o palco é meu!”. E foi embora para o camarim.

Eu acordei umas 3 noites seguidas, perdendo o sono ao me recordar dessa cena.  

Uma criança de 7 anos, autista, que gosta de música, num show para crianças com a poesia de Manoel de Barros, e toda essa história acontecendo? Há algo muito errado e tenho certeza que não foi meu filho com autismo, mas sim o despreparo das pessoas e principalmente a falta de empatia.
Arrasada por toda situação, meu esposo pegou meu filho que, na sua inocência, não percebeu o que ocorreu. Estava feliz por ter chegado perto da animação e dos instrumentos, do jeito dele, tentando interagir. Eles saíram e eu fiquei para falar com uma das funcionárias, Isadora era o seu nome, que me ouviu sem nenhuma reação empática, com os braços cruzados e me tratando como uma mãe que não sabe educar o filho. Ouvia com um olhar de superioridade.  Eu tentei explicar o quanto é difícil para nós enquanto comunidade de família de pessoas especiais saírem de casa, que os espaços precisam nos receber. Eu cheguei a me emocionar, caindo em lágrimas, mas nada a convenceu de o que fizeram foi o certo e que nós não devíamos estar ali, já que nosso filho não tem um comportamento formatado para assistir ao um show infantil quieto nos fundos e no seu lugar.

Quando saí para procurar meu esposo, entreguei o conector para ele e voltei para ir ao banheiro a fim de me recompor emocionalmente. Foi quando fui abordada por uma família que também assistiu ao espetáculo, um casal com uma criança ainda de colo. Eu não os conhecia, mas eles vieram para me dar um abraço. Disseram que estavam muito sentidos pelo o que havia ocorrido e que se colocaram no meu lugar e ficaram pensando como seria difícil passar por aquilo.

Ainda bem que ainda existem pessoas assim. Minha amiga ainda tentou argumentar com a tal Isadora em outro momento, sobre a obra de Manoel de Barros e que aquele espetáculo não poderia formatar tanto as expectativas das crianças, sejam elas autistas ou não, que os artistas dariam conta, afinal fizeram um show infantil. Mas ela não sabia que o músico havia me dito sobre sair do palco que era “dele”. Foi então que ela percebeu que realmente não havia mais nada para fazer ali. Tudo estava equivocado.

Dia 2 de abril é o dia Internacional da Conscientização do Autismo. Faremos nossa 3ª Caminhada dia 7 de abril na Av. Paulista. Em nome dos milhares que somos, peço que preparem seus funcionários e seus espetáculos para nos receber. Abram essa porta para nós e verão que o mundo do TEA é surpreendente. Aprendam e ensinem. Estamos abertos para ajudar. Não seria justo que outros passassem por isso novamente, não é justo passarmos por isso novamente, pois estaremos nos espaços culturais que meu filho gostar e for de interesse dele. Afinal, é isso que fazem os pais.
Nosso filho não é sem educação, ele é autista. É cidadão. E tem direitos.

O apanhador de desperdícios

Uso a palavra para compor meus silêncios.
Não gosto das palavras
fatigadas de informar.
Dou mais respeito
às que vivem de barriga no chão
tipo água pedra sapo.
Entendo bem o sotaque das águas
Dou respeito às coisas desimportantes
e aos seres desimportantes.
Prezo insetos mais que aviões.
Prezo a velocidade
das tartarugas mais que a dos mísseis.
Tenho em mim um atraso de nascença.
Eu fui aparelhado
para gostar de passarinhos.
Tenho abundância de ser feliz por isso.
Meu quintal é maior do que o mundo.
Sou um apanhador de desperdícios:
Amo os restos
como as boas moscas.
Queria que a minha voz tivesse um formato
de canto.
Porque eu não sou da informática:
eu sou da invencionática.
Só uso a palavra para compor meus silêncios.

Manoel de Barros