segunda-feira, 16 de maio de 2016

Ele vai falar


“O amor é ausência de julgamento”
Dalai lama

Acho que uma das condições do Transtorno do Espectro Autista que o Léo apresenta que mais me fez explicar coisas aos outros é a condição dele ser não verbal.  Aliás, foi por questões de   atraso de linguagem que começamos essa jornada.

São inúmeras as situações que passamos, pois conforme uma criança neurotípica vai crescendo, uma progressão natural é o desenvolvimento da fala. Crianças nos falam as coisas mais impressionantes. Todos os pais de crianças neurotípicas têm surpresas com as observações sobre o mundo que seus filhos fazem, e eternizam essas falas na memória.

É comum nós adultos puxarmos conversa com crianças quando as encontramos. Já escrevi sobre isso no texto Elevador. Situações parecidas com aquela continuam frequentes, mas não só nos elevadores. Ocorrem também na padaria, na fila do mercado, na pracinha, etc. Sempre há alguém disposto a falar com o Léo como se fosse uma criança neurotípica. E quando isso acontece é inevitável explicar a condição de autista não verbal, e a reação mais comum das pessoas é: “Nossa, nem dá para perceber que ele é autista, se você não falasse”. Algumas ficam constrangidas e dizem “Ah, mas ele vai falar, tenha fé em Deus. Deus só dá filhos especiais para pais especiais”. Quando o Léo não responde e eu ainda não falei nada para a pessoa, geralmente vem a pergunta: “Quantos anos ele tem?”. Felizmente temos encontrado muitas pessoas que conhecem outras crianças autistas, que nos relatam suas experiências com elas de uma forma naturalizada.

O Léo falou sua primeira palavra aos 11 meses. Lembro-me perfeitamente deste momento: estava sentado no cadeirão, eu sentada na sua frente dando comida na boquinha, ele olhou para o copo de água que estava sobre a mesa e disse “ÁGUA, ÁGUA”. Foi emocionante. Daí em diante falava “água” quando estava na banheira na hora do banho, para as ondas do mar, para a chuva. Falou ainda mais algumas palavras importantes como Mamamá (mamãe), Papum (papai), nananá (banana), peta (chupeta), tetê (mamadeira), abe (abre). O Léo reconhecia a priminha Bia, a vovó e o vovó nas fotografias, fazia gestos com as mãozinhas para cantar pintinho amarelinho, e a música “tra, lá, trá lalala...”, mandava beijos e dava tchau, batia palminhas, dançava quando cantava a música do “pula pula saci”, era um bebê risonho e ia no colo de todo mundo. Sabemos que tudo isso mudou. Não sei precisar exatamente quando e como. Mas ninguém vai tirar isso de nós, nem mesmo o Autismo, nem mesmo o esquecimento das pessoas que só lembram de quando ele parou de tentar se comunicar.

Uma questão que nos consumiu foi dar voz a uma criança que não fala. Existem autistas não verbais, existem autistas verbais, existem autista com mutismo seletivo (fala quando quer e o que  quer, e geralmente escolhe lugares e pessoas para que essa fala ocorra, não se repetindo em outros lugares ou com outras pessoas). Existe autistas com ecolalias (repete frases que ouve ou ouviu e que por algum motivo ficou na memória). Geralmente essas frases são ditas sem contexto adequado. Há também aqueles que passam anos sem falar e voltam a falar depois, alguns morosamente outros fluidamente.

Para nós pais, saber de tudo isso serve para quê, se não sabemos o que vai de fato acontecer com nossos filhos não verbais?

Serve para termos ESPERANÇA. Serve para não desistirmos de ajudá-los. Serve para procurar terapias que estimulam a fala, e formas de comunicação alternativas que possam fazer com que saibam que podem se comunicar, para que saibam que falar não é a única forma de se expressar. Serve principalmente para respeitar nossos filhos pelo que são hoje.

É quase senso comum que autistas são mais visuais do que pessoas neurotípicas. Sendo assim,  parte das terapias é estruturada em pistas visuais (mostramos as imagens e falamos ao invés de só ficar apenas na comunicação oral, organizamos quadro de rotinas em casa, na escola, tudo com pistas visuais com lugares, pessoas, atividades que irão realizar).

Foi então que as PECS(Picture Exchange Communication System, ou Sistema de Comunicaçãopor Troca de Imagens) surgiram na nossa vida, como uma comunicação alternativa apoiada nas pistas visuais. Passamos então a adotar essa metodologia de ensino para o desenvolvimento da linguagem do Leonardo. Existem críticos a essa metodologia, acreditam que atrasa ainda mais a fala, uma vez que a criança teria “preguiça” para falar, afinal ela consegue se comunicar sem precisar se “esforçar” para falar, usando as imagens ou a escrita.

Muitas pessoas já vieram me perguntar sobre o que eu acho disso. Pessoas sem filhos, com filhos neurotípicos, com filhos autistas verbais e com filhos autistas não verbais. Acho muito interessante quando me questionam, pois neste momento posso esclarecer que autista não falam por existir alguma forma de “preguiça”, pois eles entendem tudo, são inteligentes e não querem falar, ou então, que ainda não amadureceram o suficiente para falar. Não devemos fazer esse tipo de analise, pois na questão do Transtorno do Espectro Autista há uma deficiência neurológica que trás a dificuldade da comunicação e linguagem. Portanto, essas pessoas tem uma real dificuldade em organizar e estruturar seu pensamento para que haja comunicação, ainda mais no campo verbal.

Portanto, mesmo utilizando a PECS, há um imenso esforço para que a criança autista aprenda que pode se comunicar, tanto que não é uma simples troca de imagem pelo objeto desejado. São fases diferentes a serem avançadas para que a criança aprenda com autonomia o uso das PECS. Estas fases dependem muito do desenvolvimento de cada criança, algumas demoram mais que as outras para passar de uma fase para outra.

Dito isso, posso falar da nossa experiência.

Ensinar uma forma alternativa de comunicação não foi dar um “apoio” para que não fale. Ao contrário, foi dar ao Léo a possibilidade de saber que ele pode se comunicar, que estaremos aqui para compreendê-lo, que saberemos dar-lhe aquilo para o que precisar. A comunicação alternativa é a construção de uma ponte para que juntos possamos atravessar. Nós nunca poderemos ir até o mundo particular do autista, mas podemos ajudá-lo para que tenha uma ponte para quando quiser e puder atravessar e também recuar, mas que possa vir até nós.



Como já disse, a metodologia da PECS tem várias fases, e por isso é necessário encontrar profissionais que saibam fazer a terapia. E ainda há a possibilidade de os próprios pais fazerem os cursos para serem aplicadores para seus filhos. Mas é um longo caminho. Eu tive certa facilidade em estudar e aplicar algumas técnicas, pois sou psicopedagoga e fiz um curso de ABA (Applied Behavioral Analisys, ou Análise Comportamental Aplicada), onde tinha um módulo sobre comunicação alternativa, mas o Léo faz terapias com profissionais especializados, o que facilitou uma rápida aprendizagem dele.

Hoje ele tem uma pochete onde carrega um pequeno livrinho com fitas de velcro com imagens de comidas, brinquedos , atividades e objetos. Na primeira página tem uma tarjeta de velcro com a foto dele com uma pequena mão estendida e a frase “eu quero”. Assim ele escolhe a imagem do que quer, formando uma frase. Por exemplo: “Eu quero temaki”. Ele destaca a tarjeta com a frase, dá para alguém e aponta com o dedinho indicador as duas imagens, o adulto deve ler em voz alta para junto com ele: “Eu quero temaki”.



E se não tiver o que ele está pedindo? Acontece o mesmo que você faria se fosse uma criança neurotípica, diz que acabou, ou que agora não tem, ou que depois você dá.

Mas, o mais magnifico disso tudo é que eu sei o que meu filho quer. O mais importante disso é que ele SABE que pode se COMUNICAR, que pode PEDIR. Esse tipo de comunicação diminuiu as birras, as frustrações, aumentou o grau de entendimento do sobre as coisas, sobre comandos. Hoje o Léo é uma criança muito mais tranquila, integrada, segura e feliz, pois não fica mais tanto tempo frustrado por não conseguir se comunicar. Claro que muitas coisas ainda são difíceis de compreender. Por exemplo, ele ainda não consegue expressar se está com dor, onde dói, se está com calor ou frio. 
Enfim, há limitações. Estamos construindo um caminho no qual a paciência é fundamental.

Mas ao dar essa alternativa para meu filho eu estou respeitando sua identidade, respeitando quem ele é hoje, pois sim, temos a ESPERANÇA que ele venha a falar. Ter esperança é diferente de ter certeza, sabe porque? Porque meu filho não fala por que ele não quer. Ele não fala porque isso é extremamente difícil para ele.

Recentemente, foi nos apontado a questão da Apraxia da Fala Infantil, que é uma espécie de distúrbio motor da fala, caracterizado pela dificuldade de programação e planejamento das sequências dos movimentos motores da fala, resultando em erros na produção dos sons. Portanto, o Léo tem mais um obstáculo para vencer. E a certeza que tenho é do esforço que ele faz, do tamanho do guerreiro que ele é. E, para mim ele já um vencedor onde quer que chegue, verbal ou não verbal.



Dizer que “tenho certeza que ele vai falar”, sabendo que ele está me ouvindo e me compreendendo, pode gerar um stress muito grande para ele, uma pressão desnecessária, daquelas do tipo que sofrem as crianças que não conseguem ser aquilo que seus pais queriam que fossem. Por exemplo, pais que idealizam o filho atleta, campeão olímpico, mas a criança não gosta do determinado esporte, ou tem alguma outra limitação e o pai insiste que ela tem que superar, pois tem certeza que será campeão. Não dá, né? Isso não se faz, embora saibamos que ocorram diversos casos por aí.

O Léo é o que é. E ele é maravilhoso! Não dá para ficar esperando ele falar para falar com ele ou achar ele interessante ou importante só depois que falar. Temos que respeitá-lo. E para isso estou aqui. Ele é diferente, e não inferior a ninguém, por não falar. Não vai receber esse tipo de pressão de nós pais, e não vamos deixar que ninguém o faça. Por isso faço tanta questão de esclarecer alguns pontos sobre o autismo não verbal sempre que identifico uma situação em que há a necessidade.

Não vou idealizar meu filho. Mas também não vou perder a esperança nele. Vou curtir ele como ele é hoje e como será amanhã. E sim, eu sonho com ele moço batendo um papo comigo. Nos meus sonhos ele tem o cabelo raspado, usa um brinco de argola, camisa de flanela xadrez azul e preta, calça jeans com uma corrente do lado e coturno, praticamente um punk. Ele é alto e tem a voz grossa, me chama de mãe, e eu penso “nossa é o Léo”, geralmente eu acordo, com a barriga gelada. Tive algumas vezes esse sonho. Não me importo com a aparência dele, é um moço lindo. No sonho o que mais me chama a atenção é aquele moço grande me chamar de mãe e começar a conversar comigo. Não lembro do que conversamos.

Quando falo que não tenho certeza se ele vai falar, não é pessimismo, é respeito, pois sei o quanto é difícil isso para ele. Tenho esperança que não seja impossível, mas ainda não sei como será. Pode ser que a fala venha morosa, com ecolalias, ou mesmo nunca venha. Não dá para saber. Mas o que vier vai ser comemorado, assim como hoje comemoramos cada fase da PECS, cada nova surpresa que ele nos revela, cada palavrinha que fala e depois passa semanas e semanas sem pronunciá-las. Apoiamos, estimulamos, acompanhamos as terapias, estudamos, mas sem pressão, respeitando quem ele é hoje! Isso vai dar a base sólida e segura para onde vai chegar.

E eu andei conversando com algumas mães de crianças não verbais e concordamos que é muito desconfortável ouvir dos outros a frase: “Quando ele quiser ele vai falar!”, como se nossas crianças não estivessem fazendo nenhum esforço, como se não estivessem travando verdadeiras batalhas internas para poder falar, como se fosse uma escolha deles ficarem em silêncio e frustrados por não conseguirem se expressar. Muitas pessoas dizem isso sem pensar no que de fato acontece com nossas crianças guerreiras, com nós mães fênix, como se estivessem amenizando a situação, querendo dizer tudo vai ficar bem. Eu procuro compreender as intenções de várias colocações, mas as vezes é hora de nos posicionar e fazer também com que os outros possam entender nossas intenções e nossa realidade.

Essas crianças fazem horas e horas de terapias, vão à escola, passam por milhares de desafios sensoriais, são guerreiras. E o Léo é um guerreiro, vejo nele a vontade de falar, o esforço que faz. Não depende de um “ele vai falar quando quiser”. Ele já quer! Mas precisa aprender a se reorganizar e isso pode levar tempo. Não tem problema, estaremos aqui para ajudá-lo e respeitar cada fase de seu ritmo e deixar claro que nunca nos decepcionará caso não fale e, principalmente, não será uma pessoa menos importante se não falar, pois falar é apenas uma das tantas maneiras que o ser humana tem para se expressar e vamos sempre respeitar o modo de comunicação que o Léo alcançar.


 E sim, ficaremos muito felizes se ele falar. Mas meu filho já é um campeão da comunicação! E terá sempre nosso respeito e apoio pelo o que é hoje e pelo que se tornará amanhã incondicionalmente. 

8 comentários:

  1. Este comentário foi removido pelo autor.

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  2. Amanda eu fico tão emocionada quando leio seus textos, principalmente esses que são particularmente sobre o Léo, é tão lindo esse respeito que você é seu esposo tem por ele, isso é muito maior que amor, vocês são incríveis, o Leo é incrível.
    Sabe quando você fala sobre o que as pessoas falam sobre ele começar a falar, eu acho que entendo essas pessoas, que não conhecem toda essa realidade, mas que desejam o melhor para vocês, mesmo não percebendo que o melhor já acontece, pois cada conquista do Léo é tão especial e importante pra vocês. Você sonha com esse rapaz grande de voz forte te chamando... talvez o Léo também tenha sonhos semelhantes ao seu, e quando ele te olhe no silêncio dele, talvez ele já esteja buscando um meio de referência dizer todas essas palavras.
    Um beijo no seu coração

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    1. Obrigada pelo carinho Paula. Eu entendo essas pessoas. Mas em algumas situações é preciso que elas também nos entenda também e vejam além da deficiência. Na verdade escrevo aqui, pois não dá para ficar "pedagogizando" em todas as situações. Na verdade espero que as pessoas reflitam sobre o tema, não só para comigo ou com o Léo, mas sempre que se depararem com alguém especial.
      Você vive também essa realidade, sabe o como é díficil acessar os canais da inclusão social/educacional.
      E você que me fez emocionar com essa perspectiva dos sonhos que o Léo tem comigo.
      Hoje ele acordou e a primeira coisa que fez ao sair da cama foi me dar um abraço apertado e longo.
      Depois li seu comentário. Impossível não se emocionar.
      obrigada amore!

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  3. Lindo texto, me vi várias vezes nele, o meu tem 7 anos, começou a falar com 4 e hoje , consegue se fazer entender e ensaia uma conversa, usava institivamente alguns aplicativos no IPad, é para o Gustavo, ajudar muito, independente no método, o portante é achar uma maneira de compreende-Los, dando lhes condições de desenvolverem suas potencialidades, respeitando suas dificuldades, é acima de tudo com muito amor.

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    1. É muito amor, né?
      Obrigada pelas palavras.
      forte abraço

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  4. Amanda, tem alguma sugestão na alimentação . Meu filho não aceita a comida, eu respeito essa condição dele. Mas sofro muito com isso. Ele já tem seis anos. Ele diz que tá triste comigo,quando lhe ofereço alimento.

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  5. Amanda, tem alguma sugestão na alimentação . Meu filho não aceita a comida, eu respeito essa condição dele. Mas sofro muito com isso. Ele já tem seis anos. Ele diz que tá triste comigo,quando lhe ofereço alimento.

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    1. Olá Roseane,

      Teve uma época que o léo só queria bisnaguinha e danoninho, derivados do leite. Foi quando assistimos o documentário O enigma do autismo e resolvemos fazer a dieta SGSC
      https://www.youtube.com/watch?v=HGH1UD7uIQ4
      Conto um pouco desta nossa história aqui http://observatoriolivre.blogspot.com.br/2015/06/o-seu-olhar-melhora-o-meu-dieta-sem.html
      abraço

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