Quando voltei
a trabalhar, após a licença maternidade, em 2012, um professor que conversava
comigo a respeito da experiência de ser pai me disse que “filho é igual vídeo
game, o grau de dificuldade vai aumentando conforme as fases que vão passando,
e é justamente isso que o torna tão emocionante”. No dia 02 de abril de 2015, dia Internacional
da conscientização do autismo, li um texto de uma mãe que dizia que ter um
filho autista era sair da fase inicial de vídeo game e ir direto para fase 5491,
sem ter passado pelas outras, sem ter a mínima noção de como se joga esta fase.
Eu nunca fui
de jogar vídeo game, meu pai nunca nos deu esse brinquedo, não sei direito o
que passava na cabeça dele. Em alguns momentos pode ter sido alguma questão
financeira, mas me parece que ele tinha algo ideológico contra este tipo de jogo.
Enfim, eu e meus irmãos só jogávamos na casa de amigos, e não somos grandes
jogadores. Preferimos os jogos de tabuleiro. Mas estas duas metáforas cabem
muito bem para mim. Ainda mais que não sou boa jogadora.
No inicio de
setembro de 2014 passamos novamente com o Leonardo com a neuropediatra, e ela
solicitou os relatórios das terapeutas, para que pudesse fechar algum diagnóstico na consulta
seguinte, uma vez que os exames necessários haviam sido feitos e não acusavam
nada de relevante que explicasse o comportamento do Léo.
Saí do
consultório arrasada. Mesmo que a doutora não tenha falado nada sobre o
diagnóstico, meu coração e minha razão sabiam o que as terapeutas iriam
escrever sobre o comportamento do Léo, sobre o que observavam no
desenvolvimento dele. Ele evoluiu muito nos meses de tratamento, mas o contato
visual dele ainda era precário, faltava atenção em tarefas simples. Melhorou na
socialização, mas não na interação. Sou psicopedagoga, e por mais que meu
coração quisesse negar que algo estava errado ou que era o “tempo dele”, o conhecimento
que tenho me dizia que sim, ele era autista.
Todas as
pessoas que vivenciam algum tipo de perda passam pelo que os psicólogos chamam
de Luto. Perder alguém não é apenas por conta da morte. No causo do autismo,
perdemos aquela criança idealizada durante a gestação, durante os primeiros
lindos anos de vida, e temos diante de nós um filho novo, com uma condição que
ninguém sonha em ter. Existem cinco fases do luto (negação, raiva, negociação, depressão e aceitação).
Essas fases, não são lineares, nem tem períodos certos de duração. E eu passei
por cada uma delas. Essas fases são as cinco primeiras da fase 5486 do vídeo
game que é a maternidade de um filho autista. As outras fases anteriores você
não vai jogar.
A fase da
negação é aquela em que não queremos aceitar. Isso aconteceu quando o Léo fez
um ano e meio e meus pais começaram a ficar preocupados porque ele não falava.
A fase da negação é apaziguada e ratificada pela fala dos médicos “Ele é muito
novinho. Espera mais um pouco. Cada criança tem seu tempo. O Léo é uma criança
sossegada”.
A fase da
raiva veio quando a escola chamou daquela forma sem noção para dizer que havia
algo errado com meu filho, que ele poderia ser autista ou ter algum problema de
audição. Mesmo hoje que já aceitei posso sentir uma pontada de raiva no peito,
não pelo Léo, mas pela forma como me abordaram. A fase da raiva durou um pouco
mais, misturada com a negação, o que em outros textos chamei de esperança.
Negar é um recurso que usamos para tentar manter a esperança dentro de nós. Dá uma raiva danada quando alguém vem e tira
sua esperança dizendo que sim, ele é autista, sem ele ainda ter ao menos o
diagnóstico fechado. As terapeutas e os médicos foram todos cuidadosos para não
fecharem nada antes de uma investigação adequada, e de repente chega alguém que
te diz coisas do gênero “sem chances, seu filho é autista”.
Hoje eu sei que muitos só estavam querendo
ajudar. Mas nada disso diminuiu minha dor, apenas aumentou minha aflição.
Sempre que podia fugia do assunto, principalmente com minha família materna. E
no fundo eu pensava que não era justo. Por que aquilo foi acontecer justamente
comigo? E me dava mais raiva quando alguém falava que “crianças especiais vêm
para pais especiais”. Isso é um consolo e uma mentira. Há muitos pais que não
fazem ideia do que fazer com uma criança especial. Há aqueles que os abandonam,
maltratam, ou pior. Crianças com deficiência têm que ter sorte em ter pais
compreensivos e presentes, assim como todas as outras. Vocês que não tiveram filhos
deficientes, são pais especiais tanto quanto eu. Hoje eu não ligo mais que as
pessoas me falem isso. Sei que muitas falam de coração, e hoje é o que importa
para mim. Sei que é um jeito de falar que estou indo bem, de reconhecimento. Mas
no momento do luto a coisa é bem diferente.
A fase da
negociação é aquela em que as pessoas fazem pactos, promessas, se reconciliam
com Deus a fim de ter de volta sua vida como era antes. Nesta fase eu batizei o
Léo na Igreja Católica, mesmo sem acreditar mais em nada disso. Mas fiz. A
gente faz de tudo, não é?
O batismo do
Léo foi uma das causas de minha crise de fé. Assim que ele nasceu eu tentei
batizá-lo. Fui a uma igreja perto da casa onde eu morava. Lá me disseram que eu
não poderia batizar o Léo, pois meu primeiro casamento havia sido na igreja, e
eles não reconheciam a minha atual relação. Além disso, os padrinhos tampouco
eram casados na igreja. Aquilo me revoltou. Fazia tempo que eu estava sem
paciência para esses princípios católicos, essas regras de que o casamento é
sagrado, que eu não poderia ter me divorciado, essas coisas. Mas não permitir
que meu filho, que é fruto do amor, fosse batizado por conta de tecnicalidades
foi a gota d´água. Há alguns anos tinha estudado um pouco sobre budismo e me
identificado. Foi então que fui até um templo Budista, comprei alguns livros
com ensinamentos e me reencontrei com a fé. A perspectiva budista faz muito
mais sentido para mim. Mesmo assim, na fase da negociação, atendi aos pedidos
sociais, numa tentativa de dizer: “Ei, Deus cristão! Olha um pouco para mim.
Sempre fui sua filha. São os mortais aqui embaixo que não me deixam participar
dos ritos, pois ando meu caminho e assumo minhas escolhas. Por favor, não
desconte no meu filho!”.
Quando fui pedir
para as terapeutas os relatórios, entrei
na fase da “depressão”. Minha mãe me deu um livro chamado Mundo Singular. Esse livro me ajudou muito a superar essa
fase, que foi de muito medo e choro, mas me que me deu forças para me preparar
para o que viria pela frente.
Voltamos ao
consultório no dia 4 de novembro de 2014. A neuropediatra já havia lido os
relatórios, pois os havia encaminhado para seu e-mail alguns dias antes da
consulta. Ela, que é muito brincalhona, não perdeu a mão ao nos dar o
diagnóstico. Mostrou caminhos possíveis, nos disse que o Léo estava em pleno
desenvolvimento, e que se encontrássemos as terapias adequadas poderia ser uma
pessoa de alta funcionalidade, mesmo dentro do Transtorno do Espectro Autista. Deu-nos
um caminho para a luta dentro dos aspectos legais em relação aos direitos do
autista.
Saímos do
consultório em silêncio. Entramos no
carro e decidimos jantar numa praça de alimentação de um shopping que havia
perto dali. No estacionamento fiquei um pouco para trás do Léo e do Ale, e fiquei
observando os dois amores da minha vida caminharem de mãos dadas. Nenhuma lágrima
veio me atormentar, pois seria injusto continuar chorando pelo que meu filho É. Chorar por isso de agora em
diante seria negá-lo. E meu filho jamais mereceria esse tipo de lágrima. Não
quero o filho idealizado. Quero esse, nesta fase difícil do jogo. Quero tudo o
que é dele. Então, aumentei meus passos, dei as mãos para eles e fomos jantar
em uma nova fase, a ACEITAÇÃO.
Naquela semana
o Ale me presenteou com o livro Longeda Árvore, de Andrew Solomon.
Não poderia ter lido esse livro nas fases anteriores do meu luto, pois o livro
é um estudo sobre pais que têm seus filhos diferentes (pais de anões, pais de
autistas, pais de crianças com Síndrome de Down, etc.), uma experiência de criar
filhos não ajustados às definições usuais de “normalidade”. Esse foi um livro
pesado (literalmente, pois tem mais de 900 páginas), mas muito revelador em
diversos aspectos, e me ajudou a ver que a aceitação é a melhor parte, pois nos
faz seguir em frente.
E seguir em
frente não tem sido fácil. Mas o bom desse vídeo game que é a maternidade
especial é que o Léo me deu várias vidas. E me tornou uma Fênix. Nos próximos
textos vou dar pistas do que aprendi e do que me ensinaram sobre a fase 5491.
A vida não é mesmo uma aventura?
Linda Fênix!
ResponderExcluir