segunda-feira, 20 de abril de 2015

Autismo é Não Saber Jogar Vídeo Game



Quando voltei a trabalhar, após a licença maternidade, em 2012, um professor que conversava comigo a respeito da experiência de ser pai me disse que “filho é igual vídeo game, o grau de dificuldade vai aumentando conforme as fases que vão passando, e é justamente isso que o torna tão emocionante”.  No dia 02 de abril de 2015, dia Internacional da conscientização do autismo, li um texto de uma mãe que dizia que ter um filho autista era sair da fase inicial de vídeo game e ir direto para fase 5491, sem ter passado pelas outras, sem ter a mínima noção de como se joga esta fase.

Eu nunca fui de jogar vídeo game, meu pai nunca nos deu esse brinquedo, não sei direito o que passava na cabeça dele. Em alguns momentos pode ter sido alguma questão financeira, mas me parece que ele tinha algo ideológico contra este tipo de jogo. Enfim, eu e meus irmãos só jogávamos na casa de amigos, e não somos grandes jogadores. Preferimos os jogos de tabuleiro. Mas estas duas metáforas cabem muito bem para mim. Ainda mais que não sou boa jogadora.

No inicio de setembro de 2014 passamos novamente com o Leonardo com a neuropediatra, e ela solicitou os relatórios das terapeutas, para que  pudesse fechar algum diagnóstico na consulta seguinte, uma vez que os exames necessários haviam sido feitos e não acusavam nada de relevante que explicasse o comportamento do Léo.

Saí do consultório arrasada. Mesmo que a doutora não tenha falado nada sobre o diagnóstico, meu coração e minha razão sabiam o que as terapeutas iriam escrever sobre o comportamento do Léo, sobre o que observavam no desenvolvimento dele. Ele evoluiu muito nos meses de tratamento, mas o contato visual dele ainda era precário, faltava atenção em tarefas simples. Melhorou na socialização, mas não na interação. Sou psicopedagoga, e por mais que meu coração quisesse negar que algo estava errado ou que era o “tempo dele”, o conhecimento que tenho me dizia que sim, ele era autista.

Todas as pessoas que vivenciam algum tipo de perda passam pelo que os psicólogos chamam de Luto. Perder alguém não é apenas por conta da morte. No causo do autismo, perdemos aquela criança idealizada durante a gestação, durante os primeiros lindos anos de vida, e temos diante de nós um filho novo, com uma condição que ninguém sonha em ter. Existem cinco fases do luto (negação, raiva, negociação, depressão e aceitação). Essas fases, não são lineares, nem tem períodos certos de duração. E eu passei por cada uma delas. Essas fases são as cinco primeiras da fase 5486 do vídeo game que é a maternidade de um filho autista. As outras fases anteriores você não vai jogar.



A fase da negação é aquela em que não queremos aceitar. Isso aconteceu quando o Léo fez um ano e meio e meus pais começaram a ficar preocupados porque ele não falava. A fase da negação é apaziguada e ratificada pela fala dos médicos “Ele é muito novinho. Espera mais um pouco. Cada criança tem seu tempo. O Léo é uma criança sossegada”.

A fase da raiva veio quando a escola chamou daquela forma sem noção para dizer que havia algo errado com meu filho, que ele poderia ser autista ou ter algum problema de audição. Mesmo hoje que já aceitei posso sentir uma pontada de raiva no peito, não pelo Léo, mas pela forma como me abordaram. A fase da raiva durou um pouco mais, misturada com a negação, o que em outros textos chamei de esperança. Negar é um recurso que usamos para tentar manter a esperança dentro de nós.  Dá uma raiva danada quando alguém vem e tira sua esperança dizendo que sim, ele é autista, sem ele ainda ter ao menos o diagnóstico fechado. As terapeutas e os médicos foram todos cuidadosos para não fecharem nada antes de uma investigação adequada, e de repente chega alguém que te diz coisas do gênero “sem chances, seu filho é autista”.

Hoje eu sei que muitos só estavam querendo ajudar. Mas nada disso diminuiu minha dor, apenas aumentou minha aflição. Sempre que podia fugia do assunto, principalmente com minha família materna. E no fundo eu pensava que não era justo. Por que aquilo foi acontecer justamente comigo? E me dava mais raiva quando alguém falava que “crianças especiais vêm para pais especiais”. Isso é um consolo e uma mentira. Há muitos pais que não fazem ideia do que fazer com uma criança especial. Há aqueles que os abandonam, maltratam, ou pior. Crianças com deficiência têm que ter sorte em ter pais compreensivos e presentes, assim como todas as outras. Vocês que não tiveram filhos deficientes, são pais especiais tanto quanto eu. Hoje eu não ligo mais que as pessoas me falem isso. Sei que muitas falam de coração, e hoje é o que importa para mim. Sei que é um jeito de falar que estou indo bem, de reconhecimento. Mas no momento do luto a coisa é bem diferente.

A fase da negociação é aquela em que as pessoas fazem pactos, promessas, se reconciliam com Deus a fim de ter de volta sua vida como era antes. Nesta fase eu batizei o Léo na Igreja Católica, mesmo sem acreditar mais em nada disso. Mas fiz. A gente faz de tudo, não é?

O batismo do Léo foi uma das causas de minha crise de fé. Assim que ele nasceu eu tentei batizá-lo. Fui a uma igreja perto da casa onde eu morava. Lá me disseram que eu não poderia batizar o Léo, pois meu primeiro casamento havia sido na igreja, e eles não reconheciam a minha atual relação. Além disso, os padrinhos tampouco eram casados na igreja. Aquilo me revoltou. Fazia tempo que eu estava sem paciência para esses princípios católicos, essas regras de que o casamento é sagrado, que eu não poderia ter me divorciado, essas coisas. Mas não permitir que meu filho, que é fruto do amor, fosse batizado por conta de tecnicalidades foi a gota d´água. Há alguns anos tinha estudado um pouco sobre budismo e me identificado. Foi então que fui até um templo Budista, comprei alguns livros com ensinamentos e me reencontrei com a fé. A perspectiva budista faz muito mais sentido para mim. Mesmo assim, na fase da negociação, atendi aos pedidos sociais, numa tentativa de dizer: “Ei, Deus cristão! Olha um pouco para mim. Sempre fui sua filha. São os mortais aqui embaixo que não me deixam participar dos ritos, pois ando meu caminho e assumo minhas escolhas. Por favor, não desconte no meu filho!”.

Quando fui pedir  para as terapeutas os relatórios, entrei na fase da “depressão”. Minha mãe me deu um livro chamado Mundo Singular. Esse livro me ajudou muito a superar essa fase, que foi de muito medo e choro, mas me que me deu forças para me preparar para o que viria pela frente.  

Voltamos ao consultório no dia 4 de novembro de 2014. A neuropediatra já havia lido os relatórios, pois os havia encaminhado para seu e-mail alguns dias antes da consulta. Ela, que é muito brincalhona, não perdeu a mão ao nos dar o diagnóstico. Mostrou caminhos possíveis, nos disse que o Léo estava em pleno desenvolvimento, e que se encontrássemos as terapias adequadas poderia ser uma pessoa de alta funcionalidade, mesmo dentro do Transtorno do Espectro Autista. Deu-nos um caminho para a luta dentro dos aspectos legais em relação aos direitos do autista.

Saímos do consultório em silêncio.  Entramos no carro e decidimos jantar numa praça de alimentação de um shopping que havia perto dali. No estacionamento fiquei um pouco para trás do Léo e do Ale, e fiquei observando os dois amores da minha vida caminharem de mãos dadas. Nenhuma lágrima veio me atormentar, pois seria injusto continuar chorando pelo  que meu filho É. Chorar por isso de agora em diante seria negá-lo. E meu filho jamais mereceria esse tipo de lágrima. Não quero o filho idealizado. Quero esse, nesta fase difícil do jogo. Quero tudo o que é dele. Então, aumentei meus passos, dei as mãos para eles e fomos jantar em uma nova fase, a ACEITAÇÃO.

Naquela semana o Ale me presenteou com o livro Longeda Árvore, de Andrew Solomon. Não poderia ter lido esse livro nas fases anteriores do meu luto, pois o livro é um estudo sobre pais que têm seus filhos diferentes (pais de anões, pais de autistas, pais de crianças com Síndrome de Down, etc.), uma experiência de criar filhos não ajustados às definições usuais de “normalidade”. Esse foi um livro pesado (literalmente, pois tem mais de 900 páginas), mas muito revelador em diversos aspectos, e me ajudou a ver que a aceitação é a melhor parte, pois nos faz seguir em frente.

E seguir em frente não tem sido fácil. Mas o bom desse vídeo game que é a maternidade especial é que o Léo me deu várias vidas. E me tornou uma Fênix. Nos próximos textos vou dar pistas do que aprendi e do que me ensinaram sobre a fase 5491.

A vida não é mesmo uma aventura?







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